Thursday, February 10, 2005

O ACASO E O TEMPO

Sou feita de tempo. Todos somos feitos de tempo. Múltiplos tempos tecidos de histórias que se entrelaçam num palco por onde passamos todos, companheiros de uma epopeia em que eu não desempenho senão um pequeno papel. O tempo que me faz é a duração de tudo o que guardo na memória. E de modo tão frágil é a recordação do que chamamos passado que podemos chorar por já ter rido, no presente, e rido por já ter chorado noutra hora e repetir vezes sem conta, sem termos a noção de que a verdade nem na nossa mente permanece a mesma.
Mas pensamos que temos a verdade na mão. Pelo menos alguma verdade... Somos, ao fim e ao cabo, as nossas memórias num presente qualquer que já se desvanece, vivemos guiados por um fio que vem de um passado sempre obscurecido de infâncias e da nascente para nos tornamos riacho e depois rio até um mar eterno que nos aguarda inexoravelmente. As margens da nossa história são marcos bem mais importantes que a nossa passagem.
Quem é senhor de mudar o curso da grande História? Bastaria um mensageiro perdido, uma arma bem arremessada e toda a História seria diferente. Se Júlio César não atravessasse o Rubicão? Ou se Afonso Henriques tivesse nascido do sexo feminino? Ou Napoleão ou Hitler tivessem tido difteria ou outra doença fatal na infância?
Tolstoi, na sua obra Guerra e Paz, refere como numa grande batalha que decide um império depende de uma ordem que pode nem chegar e bastaria um simples soldado para que tudo se pudesse alterar e ser diferente. Por isso a ideia dos grandes homens que fazem a História não podia ser válida.

Há alguém que chegou num tempo escolhido e representa uma etapa do espírito.
Acaso, destino, fio lógico, nada é seguro.
A História sempre me intrigou por ser uma memória que se constrói feita
de recordações alheias interpretadas em cada época de um modo diferente. A interpretação da própria época já é complexa e parcial. Como pode ser justa a memória reescrita tanta vez?
Sou eu que faço o meu tempo porque não é verdade o passado que me escrevo e recordo. Há sempre muito afecto que altera a razão. Outro e mais outro existe de que não me recordo e faz a minha duração no mundo. A duração dos outros, do que eles recordam de si é também um pouco da minha história. O romancista Pedro Paixão, em Quase gosto da vida que tenho, afirma: "Tenho de continuar a aturar o adolescente em mim. (...) Fui acumulando quem sou.(...) Fui-me conservando a mim próprio pelo respeito de nunca saber quem era, o que seria, de ignorar o que se estava a passar, o que por mim passava, aquilo a que tão inconscientemente chamamos vida".
Quantos acontecimentos se deram para que chegássemos a esta viragem na História. Hegel tinha razão quando escrevia que a existência do passado estava toda inteira contida no presente. O passado existe precisamente porque a sua forma de ser é o devir necessário da própria realidade. Que responsabilidade cada passo que damos só por aqui estarmos e esse privilégio é único e especial para cada duração. É muito difícil explicar o que é o tempo. Santo Agostinho dizia que sabia muito bem o que era quando não lho perguntavam mas que deixava de saber quando queria explicar. Talvez que quando se fala de duração o termo mais concreto nos dê a consistência do nosso existir. Sempre frágil e fugidia a duração do que somos aumenta cada momento e falamos então de um passado.
Porém a nossa riqueza fundamental é o que decidimos fazer com a nossa
duração como se a palavra presente, tal como é em português, tivesse múltiplos sentidos e um eles fosse uma oferta constante de oportunidade num projecto global em que nos movemos.
"A verdade é filha do tempo e a verdade é filha da razão". Mas nós somos filhos do tempo também, mais do nosso tempo do que dos nosso pais. Todavia a evolução da razão altera as estruturas preceptivas dos acontecimentos. Tentar entender o fio da História, através da acionalidade dos Sumérios, Egípcios, Gregos ou Romanos, é tentar o impossível porque se moviam noutra verdade e noutras referências. Os seus mitos não são os nossos e a nossa magia é diferente. A consciência histórica reporta-se a uma actualidade que, de acordo com o filósofo já falecido, Manuel Antunes, em "Indicadores de Civilização": "a medida da actualidade é a vida", na sobrevivência das grandes criações do espírito humano.
Viver o nosso tempo é descobrir como somos um milagre gratuito. Com a responsabilidade imensa que nos cabe. Seja da longa evolução com toda a sua cadeia de acontecimentos de milhões de anos, seja do acaso, ou seja da Providência, o sentido maior da História é sempre seus últimos tempos.
Isso será a actualidade ancorada nas nossas frágeis existências. Toda essa humanidade da qual muitas vezes apenas chamamos outros. Esses outros que agora somos nós.
Lúcia Costa Melo

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